terça-feira, 5 de junho de 2012

Se já sabemos, porque ainda continuamos fazendo? por Christiane Araújo

Há um ano e meio residindo em Campo Grande, contribuo à comunidade artística local e demais regiões do país que se apresentam em processo de aprimoramento do fomento da arte e da dança. Pretendo, com este texto, que façamos realmente uma discussão e reflexão da dança na cidade e no estado. Pensando, questionando e principalmente observando nossas funções perante alunos e toda nova geração de artistas da dança, recentemente fui questionada sobre Ética; inicio meu texto, então, relembrando o que é ética: O termo ética deriva do grego ethos (caráter, modo de ser de uma pessoa). Ética é um conjunto de valores e princípios que norteiam a conduta humana na sociedade. A ética serve para que haja um equilíbrio e bom funcionamento social, possibilitando que ninguém saia prejudicado. Neste sentido, a ética, embora não possa ser confundida com as leis, está relacionada com o sentimento de justiça social. Podemos dizer então que Ética é a arte da convivência, é uma atitude no “viver-com”. Quando a gente começa a se questionar sobre a vida, começa um processo de entender o que somos. Trata-se de como a pessoa organiza sua existência e como forma uma consciência que se constrói refletindo. À medida que amplia a consciência de si mesmo, torna-se livre, portanto responsável. E, diante disso, lanço o olhar para os festivais competitivos de dança. Existe uma arte da convivência? Trata-se de algo ainda muito presente e talvez como única forma de demonstração/apreciação de dança quando se sai do grande eixo cultural do país. Ao frequentar, observo o posicionamento visto nos profissionais lá presentes, pessoas que desenvolvem e pronunciam saberes. Os jovens e crianças em cena e nos bastidores. Observo o público, o pronunciamento dos responsáveis e o próprio conceito do evento que foi elaborado: COMPETIR. Toda ação, gera outra ação. Quando se propõe que estudantes disputem entre si, nada mais óbvio do que se esperar a rivalidade, a torcida organizada, o desrespeito ao processo artístico do outro, sem falar no desestímulo que traz ao jovem em saber que perdeu. Quando se estimula isso nas pessoas, esse é o resultado que se obtém. E aí pergunto: Será que essa é a melhor forma de estimularmos a dança nas pessoas e na cidade? Esta questão não é um privilégio apenas em Campo Grande, mas é uma questão nacional. Diversos festivais são realizados em todo o país. O Festival de Joinville, por exemplo, sob a coordenação de profissionais de relevância artística, encontrou uma alternativa, propondo em 201, pela 5ª vez, o “Seminário de Dança”, onde conseguem aproveitar a imensa concentração de estudantes de dança, coreógrafos, diretores e propor palestras, mesas redondas, abrindo espaço assim para a reflexão e discussão dos vários caminhos da dança. Mas é o suficiente? Não, reina ainda a grandiosidade mercadológica que é um festival desse porte, perante o processo de ensino aprendizagem da arte, da abordagem que permeia o conceito do fazer, contextualizar e transformar. O que se promove de transformação humana e social nesses jovens com os festivais de dança? E com isso voltamos a questionar: será que a competição que é inerente à condição humana, deve ser trabalhada desta forma, como base do processo de formação de educação para a arte? Se olharmos para os outros segmentos artísticos, veremos que na dança esse formato é exercido com muito mais frequência e abrangência. Nas artes plásticas, por exemplo, pouco se fomenta eventos com o objetivo de avaliar que o desenho de um aluno é melhor que o do outro, no entanto se propõe exposição de artes plásticas aos alunos. Na música, são propostos encontros, mostras, apreciações, shows... e, no teatro, muito menos, o processo dos alunos é respeitado como deve ser: mostra de teatro amador. Não que não exista, mas dificilmente veremos tantas competições nas outras áreas. E por que então nós, da dança, ainda estamos neste lugar? Submetendo nossos alunos a mostrarem à sociedade que o professor X orienta/coreógrafa/dirige melhor que o professor Y? E o pior: Premia-se por isso! Eliana Caminada, em seu pronunciamento de formatura para seus graduandos em dança, diz: “Lembrem-se: a arte tem um compromisso com a sensibilidade e com a beleza; a verdade matemática é o axioma da ciência, não da arte. Procurem com todas as forças impedir que a dança se transforme em uma mera exibição vazia de marcas atléticas ou numa "pseudo-arte" que nada mais é do que palavras bonitas amparadas pelos meios de comunicação, mas desprovidas do essencial: a vivência corporal da dança". Quando falo que a competição é algo inerente ao ser humano, logo penso na educação física. Por muitos anos esta ciência só se baseou no processo competitivo como recurso de formação dos seus alunos. E hoje a própria educação física já questiona a competição dentro deste processo. Recentemente, assisti uma qualificação de mestrado em educação, em que o pesquisador falava-nos sobre os novos caminhos para a educação física, pesquisou a “Cultura lúdica” e a “cultura do movimento” no ensino fundamental. Paremos então... Se a própria ciência que estimulava até então a competição, já questiona esse lugar enquanto processo de formação do indivíduo, por que nós da dança (que somos da arte e não do esporte) ainda fomentamos e apoiamos essas iniciativas? Será que a competição em arte não deveria somente estar no local de atuação profissional? Se sabemos até que mesmo neste lugar ela já esta sendo questionada! Por que então? Locais estes designados para o mundo adulto: que competem sim competem seus projetos em editais públicos e privados, nos quais disputam vagas de empregos em instituições de relevância? Onde competem mercado? Ou seja, onde já possuem maturidade para entender o mundo competitivo que vivem? Por que colocar nossos alunos (aprendizes em arte) para disputar entre si, se esta questão só traz a rivalidade entre eles e o desestímulo perante a dança? Caros amigos, profissionais como eu, estamos numa era de Cooperação, de contextualização, de movimentos aglutinadores, de rede com relações construtivas, de ações colaborativas em prol de um bem comum. Enquanto a dança ficar disputando alunos de uma escola para outra, disputando melhor coreografia, melhor bailarino, melhor diretor, melhor figurino, melhor, melhor... A classe só tem a perder! Em resumo, convido-os a parar e pensar que caminhos apresentaremos aos nossos alunos para fomentarmos cidadãos melhores? Em que local está o nosso fazer artístico para que venha realmente somar à sociedade e o fomento da dança na cidade e no país? Enfim, que parta de nós a arte da convivência, um caminho para a reflexão! Espero, verdadeiramente, que saibamos nos colocar com ética e profundidade aos órgãos públicos competentes, para juntos traçarmos novos e saudáveis caminhos da dança no Mato Grosso do Sul, na ponte com grandes eixos culturais e com todo Brasil. E, para finalizar, compartilho um texto de Isabel Marques, onde nos traz pensamentos e reflexões de sobra sobre nossos produtos/processos. http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=10153
Christiane Araújo, atualmente é artista docente das Graduações de Artes Cênicas e Dança – UEMS e UFGD /MS e diretora da Eixo Produções Culturais.

4 comentários:

  1. Ótima colocação! Porem este problema não acontece somente na dança, temos exemplo de festival competitivo no teatro aqui no estado a mais de 20 anos e apesar da maioria constatar que o formado é ultrapassado, a FCMS no ano passado realizou dois festivais de teatro no interior do estado com o mesmo formato, alertamos dos problemas que isto poderia causar, mas optaram por manter o formato, conclusão no final do festival após a premiação os grupos não se comprimentavam e a maioria foram embora sem se falarem.
    Deixando claro mais uma vez que este formato de festival ao invés de contribuir com um crescimento e fortalecimento da arte, causa na verdade uma rivalidade e distanciamento.

    Mauro Guimarães

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  2. Admirável a profundidade da discussão proposta pela articulista Prof. Christiane Araújo. Tentei resgatar um livro que li há muitos anos, de uma educadora gaúcha (PUCRS) sobre leitura, mas não obtive sucesso. O questionamento é o mesmo e me lembro de um capítulo com o seguinte título: a criança posta em competição. A despeito de pensarmos estetica e socialmente e descrer dos resultados da condução sob esta forma, em essência vivemos num mundo onde a competição gera o crescimento dos indivíduos. Há que se abrandar, creio eu, de uma forma pedagógica, o impacto negativo da valoração (classificação), por muitos fatores, sobretudo pela dúvida do "inquestionável" conhecimento do avaliador pontual. Os "famosos" festivais de teatro regional, promovidos pela FESMAT, também nos remetem a estes questionamentos, com o agravante da "falta de lisura" na consecução do processo classificatório. Há muito que se questionar e discutir nesta temática. Parabéns a vocês!

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  3. Se a arte tem por finalidade tornar-se um produto para o mercado, a competição será inelutável. Questionar a competição implica questionar os editais de concursos de projetos que usam como critério a estimativa de público-alvo, o potencial do espetáculo para atrair pagantes e não pagantes. Todas essas formas de seleção para acesso ao financiamento público conspiram contra a qualidade da obra de arte, ao conspirar contra a liberdade criativa. E, no limite, são contrárias a uma ética artística, cujo papel seria, justamente, descortinar o novo ao quebrar regras e costumes. Como fazer isso obedecendo critérios econônicos, políticos, o senso comum do gosto popular ou até mesmo o bom gosto dos especialistas? Van Gogh e Glauber Rocha teriam financiamento público antes que vencessem as resistências à sua arte? É hora de discutir. Para começar, sugiro que para cada festival seja realuzado um anti-festival.

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