segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A DANÇA DA SOLIDÃO AOS 30 ANOS

Nasci quando tomei tenência de quem eu era. Ao menos eu pensava que sabia. Isso aos dez anos. Sou de um tempo em que a neutralidade política era proibida pela oposição e a atividade política era proibida pela situação. Assim foi que decretamos, mais ou menos aristotelicamente, eu e outros guris da cidade: o homem é um ser político. Escolhemos uma posição política, logo, somos homens. Daí a considerar todo apolítico como estúpido ou traidor foi um passo. Neutralidade era impossível e respondia pelo nome de alienação. Só se podia conceber como legítimo um pensamento que coubesse no gabarito da cartilha de materialismo dialético e de socialismo científico que a gente usava, um velho manual escrito para a Universidade Operária de Paris por Georges Politzer. Qualquer outra coisa era metafísica, superstição, mentira, complô, cilada e traição! De dialética nada sabíamos, é claro, mas era uma beleza pensar que tudo se relaciona e tudo se transforma. Isso me enchia de esperança, quase de alegria, só não ficava eufórico para não parecer babaquice. No mais, estávamos presos num maniqueísmo bem formal, rigorosamente dualista, estritamente cartesiano! Quase tudo separado apenas em duas partes antagônicas: socialismo e capitalismo, ciência e religião, carne e vegetais, homem e mulher, intelectual e alienado, mente e corpo. Corpo, aliás, era somente um veículo que levava a mente para beber no boteco e a trazia de volta para casa. Bebia-se com a mente. O Ser era a mente. Tudo devia ser pensado, até as sensações. “Penso, logo existo” (Descartes).
Mas houve que lá pelos quinze anos minhas convicções foram atropeladas pela revolução interna dos hormônios, uma luta proposta pelo corpo e que incendiava muito mais do que a imaginação, tirando-me do enlevo pelo campo de batalha imaginário onde esmagava os fascistas. E sofri então minha primeira dança, em bailinho vigiado, à meia luz, com o pau do lado direito da calça, mais todo duro do que um boxeador. E foi assim que a enchente hormonal me levou aos 21 anos, entre culpas e rimas em coração: virgem, devasso platônico e prófugo da militância socialista, trabalhando para comprar um carro e abandonar a devoção ao onanismo.
Ainda assim não tinha aprendido o suficiente para arrumar uma namorada. Àquelas que não se assustavam com a minha prosa violenta tentava convencê-las de que podiam ser o que eu esperava que elas fossem: sensuais, equilibradas e amigas. Bastaria que se decidissem a seguir um programa de leituras e treinamento que eu havia desenvolvido. Começava com a leitura do Grande Sertão: Veredas e seguia com diálogos diários alimentados por novas leituras. Devo ter sido o primeiro homem a querer discutir a relação todos os dias. Claro que isso não deu certo. Mulheres não se divertem submetendo a base da relação a dúvidas hiperbólicas. Sendo assim, fiquei só, falando sozinho, e com apenas uma palavra casei aos 25 anos e tive uma filha. Cinco anos depois me separei do meu personagem casado, ainda sem entender direito o que tinha acontecido.
Desse modo a idade da razão me alcançou quando eu já era pai e não tinha ainda sido criança. Escaldado com água fria, descobri-me, então, um corpo a ser pensado e não o contrário. Aos trinta, afinal, a autocondescendência de ser “um jovem de futuro” começa a desaparecer, no mesmo ritmo em que a barriga cresce.
Contei este amanhecer apenas para situar o causo, que sem esse fundo cairia num branco desentendido. Até os trinta é a manhã do ser. Perdidas as certezas infantis do meu sistema de ideias, encontrei a bailarina. Falei-lhe do amor e da amizade, da solidão e da esperança, do fogo e da água. Ela virou-se distraída para uma janela e levantou a perna. Levou depois a cabeça até o joelho e sorriu para mim, dizendo com todas as suas curvas silenciosas: veja como eu sou gostosa! Eu entendi logo e dei-lhe para ler o Grande Sertão: Veredas.
Em trinta dias ela leu o livro e disse: gostei! Eu lhe propus, então, sem mais delongas nem celeuma literária, um casamento amigável, com permissão para toda dança em contrapartida de que me desse logo um filho. Levou o assunto para casa e no outro dia voltou com a chave de três filhos, uma blusa que deixava os seus peitos apontando para a encruzilhada do bem e do mal, um para o Norte, no rumo da repartição, outro para o Leste, no rumo da praia.
Depois disso, todas as conversas foram crises. Todos os silêncios foram suficientes. E aprendi com o silêncio a observar os movimentos, sem ter necessidade de explica-los, imerso no suave deleite da ignorância. O corpo buscando, no escuro, pelo arco e o ângulo do encontro. “A amizade não é possível quando dois silêncios não se combinam” (Mário Quintana).
Para se entender em silêncio basta não ter assunto, só o impulso da solidão.

5 comentários:

  1. PORRA, Zé, que lindo! Sabe, eu vejo na dança essa solidao imensa, compartilhada. Em mim sinto sublinhado, pq qdo criança passava as tardes sozinhas em casa com o meu irmao e qdo a gnt enjoava de asssitir o filme Comando Para Matar, eu colocava uma música e dançava por horas, trocava o lado do disco e depois colocava outro e outro de novo. Essa sensaçao eu trago comigo, consigo acessar rápido... Mas é compartilhada quando a gente coloca o outro como observador, e ele conecta a solidao dele na sua, um duo. Acho que dançar passa por isso, coisa bonita da vida o silêncio. Seu texto tao lindo.

    ResponderExcluir
  2. Minha mãe, que como grande parte das mães é responsável pelo rebento ter quase 30 anos e ainda ganhar coelhos de chocolate na Páscoa, me deu uma camiseta do Piu-piu. Na estampa, o Piu-piu e um questionário:

    "Você acha que eu sou um pássaro:
    () lindo.
    () muito lindo.
    () lindo de morrer.

    Eu, como os queridos acima, voto nas três alternativas. Texto lindo, muito lindo e lindíssimo. Sensível e cheio daquele humor saudável que nos permite andar sobre a brasa, ou aprender o silêncio.

    ResponderExcluir
  3. Puxa, muito bom ler.
    Lindo, lindo.
    Obrigada, Zé.

    ResponderExcluir