quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Doenças e paixões

Cheguei em casa mal. Tinha trabalhado sem conversar muito, almoçado idem. Até de noite, estava quieta, encapotada em mim mesma. Minha família perguntou o que eu tinha, eu disse que não era nada. Mas os namorados, esses homens santos, a gente não poupa dos podres. Contei que estava cansada, envenenada por cada gesto egoísta, injusto e obtuso pelo caminho, desanimada de ver esse mundo aí fora, cheio de crime e mesquinharia. As pessoas pulam pela janela, a comida estraga na geladeira, pais com pressão alta que não fazem exercício, a China, a família Sarney. Tudo estava envolto em mentira, miséria e solidão. Não sei nem pra quê a gente nasce, eu falei.

Em outras palavras, eu tinha acordado com uma gripe dos diabos.

Em 2008, tive muita faringite, amidalite, sinusite e li muito Cioran. Neste mesmo ano, um amigo me ligou tarde da noite.

- Eu não quis te falar antes pra não te preocupar, mas desde então meu estado só piora. Preciso contar pra alguém, nós somos tão amigos.

Eu em silêncio do outro lado, imaginando tragédias como uma mãe. Ele continuou:

- Eu estou ficando louco.

Começou a descrever tudo que tinha sentido nos últimos meses, as dúvidas disparatadas, as crises na rua, em casa, falta de concentração no trabalho, o corpo que chegava a tremer de ansiedade. Tinha ido ao psiquiatra. Ele nunca tinha sentido aquilo antes, mas eu, raposa velha, depois de umas perguntinhas, sabia o que estava acontecendo. Que psiquiatra o quê.

- Cara, você está apaixonado.

Apesar de ter mais de 20 anos, era a primeira vez que ele se apaixonava, só podia achar que estava mesmo louco.

Entre outras semelhanças entre ficar doente e ficar apaixonado, ambas são experiências onde o corpo se impõe de forma particular.

O doente não se esquece do corpo, e dependendo da enfermidade, o corpo não o deixa lembrar muitas coisas mais. Cobra atenção a cada inspirar, mimado como – uma das melhores gírias dos anos 2000 – filho de vó. Nas doenças mais debilitantes, o passado e o futuro se apagam, nublados como sonho, enterrados sob camadas de febre; só há o presente da dor e do desconforto. Quando a doença é menos imperiosa, porventura crônica, a aflição é melhor, mas talvez também maior: o sujeito pode pensar na sua condição e descobrir muitas verdades. O corpo é finito, o tempo é curto, a rapadura não é só doce. A impressão de controle que tínhamos sobre nossas vidas era falsa, só um golpe de sorte, e a rua está cheia de azarados.

Nas famosas cartas do bem-aventurado Jordan da Saxônia à bem-aventurada Diana d’ Andalò, no século XI, ele diz sentir nas próprias pernas as dores que as dela sentem. O exemplo de amor esplêndido, grandioso, só não escapa da condição solitária do corpo, e as dores da perna de Diana são por dois multiplicadas, e não por dois divididas. O doente é o sujeito mais solitário de qualquer cama – mesmo que o ser amado traga aspirina.

Mas pra abrir as janelas e arejar esse texto com um pouco de ar, sol e justiça sobre as malaises, podemos dizer que a solidão trazida pela doença pode ser aquela que Louis Lavelle chamou afortunada, capaz de nos fazer “descobrir o poder que possuímos de dar-nos tudo a nós – o que é a vida mesma do espírito”. Por ser o homem um bicho facilmente superficial e distraído (juro que não estou gripada agora), às vezes é preciso uma coisa assim pra despertar o saudável reconhecimento do valor da vida e da realidade da morte. Despertar que faz o sujeito perceber suas condições de solidão e também de partilha... como no amor.

Na paixão, o corpo é afetado primeiro pelo deleite com a coisa apaixonante. Ele acorda pra intensidade da vida, e ficamos sensíveis não só pra o que se refere ao objeto da paixão, mas pra todo o resto. As cores, os prazeres, as mágoas ficam mais expostas. Qualquer coisa é motivo de humilhação, qualquer coisa é motivo de êxtase.

Além disso, o sentimento causado pelo objeto de paixão é de tamanha intensidade, que o apaixonado precisa de retorno, precisa fazer alguma coisa com isso: precisa ser correspondido no amor pela outra pessoa, precisa possuir, precisa desfrutar, precisa pelo menos dizer o que está sentindo, caramba. Tudo que está dentro de quem se apaixona precisa sair pra fora, de preferência voando. A expressão “não se cabe no corpo” só pode ter sido criada por um apaixonado, fosse ele alto como o Cortázar e gordo como o pesadelo de uma anoréxica.

Essa vontade de extravasar o sentimento se estende ao máximo que pode, então, vamos dizer a coisa romanticamente, eis aí casais copulando e/ou se reproduzindo (“morrendo” e “matando” só quando estivermos com a dor de dente dos diabos). Casais passeando de mãos dadas, enlaçadas, confundidas. A Felícia, do desenho animado da Warner Bros, dizendo pros bichinhos que ela adora de paixão: “Quando te pegar, vou te abraçar e beijar até seus olhinhos saltarem pra fora! Até tirar todo ar de seus pulmões!”. Vai dizer que meu amigo estava sendo ingênuo, ao achar que estava louco! Ingênuos somos nós, os apaixonados oito vezes por semana.

Eu sempre dancei muito quando estava apaixonada, principalmente quando não era por um homem lindo e maravilhoso que no futuro me traria aspirinas e me abraçaria até meus olhinhos saltarem pra fora. Quando tinha um filme muito bom, uma dança impactante, uma conversa estimulante, tudo isso me fazia, às vezes, até dar pause, olhando pros lados pra conferir se não tinha mesmo ninguém em casa pra ver o desatino, e dançar um pouco, pra me livrar de ter tanta paixão despertada, transbordando, sem poder pôr pra fora. Saía dançando pela sala, sublime, e depois voltava pro sofá pra continuar a ver, apaziguada de paixão.

Curiosamente, quando sentia começar ou terminar uma gripe ou outra afecção leve, também me dava vontade de dançar. Não podia estar caindo pelas tabelas, mas se estivesse ainda no controle, sentindo tropas de vírus e bactérias conquistando postos no meu corpo, me dava vontade de dançar. Não sei se era uma forma de me impor, de reivindicar o direito ao corpo em seu máximo de potência, uma recusa à doença, ou uma fuga da doença ao fingir que não a tinha. Quem sabe a lembrança de que tudo podia ser diferente, eu sem saúde, eu sem felicidade, eu sem uma casa pra dançar, tudo isso talvez me desse vontade de celebrar o que eu tinha, ainda. O fato é o fato, as explicações que contem outra.

Tendo ouvido essa reflexão uma vez, um amigo que dividiu o apartamento comigo por um tempo um dia esperou a música e as batidas de pé cessarem do outro lado da porta. Educado, esse meu amigo. Bateu, eu abri, suada e de cabelo em pé, pra ouvir a pergunta fatal:

- E aí, está doente ou apaixonada?

2 comentários:

  1. Êita, que bicho bom é Moema doente de paixão, até para os espectadores!

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  2. estar doente ou apaixonado, estar lúcido ou em estado de delírio, estar fraco ou forte, estar livre ou preso, estar bêbado ou limpo. Não sei muito bem separar cada sentido do viver, mas chego a pensar que estou caminhando.

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